Lygia Pape em Londres – From plane to space: the abstract art of Lygia Pape

Lygia Pape é considerada uma das artistas brasileiras mais importantes do século 20. E uma figura especialmente importante para minha história.
Leia artigo original e completo em Lygia Pape - Magnetized Space (studiointernational.com)

Lygia Pape é considerada uma das artistas brasileiras mais importantes do século 20. E uma figura especialmente importante para minha história. Trabalhei com Lygia em uma exposição do projeto Amigos da Gravura, no Museu da Chácara do Céu, no Rio de Janeiro, no final da década de 1990 e fiquei fascinada com a precisão em tudo que fazia. Quando meu período no cargo de arte-educadora acabou e me despedi do museu, fui presenteada com uma gravura da edição de cem litografias que Lygia fez para a coleção. Um raro item de colecionador que muito tempo mais tarde vendi pela casa de leilão Christie’s em Londres, o que me ajudou a financiar a vida na capital inglesa.

Em 2012, a exposição Lygia Pape – Magnetized Space, apresentou algumas das principais obras da artista em Londres com uma seleção de diversas mídias utilizadas pela artista. A mostra foi um aperitivo se considerada a obra completa de Pape, mas foi uma oportunidade para o público britânico conhecer e reconhecer a grandiosidade da artista brasileira. A crítica que eu escrevi na época você pode ler em inglês no site do Studio International e a versão em português segue abaixo.

A artista Lygia Pape (1927-2004) disse uma vez que seu principal interesse, quando embarcou em uma carreira nas artes no início dos anos 1950, foi criar uma relação entre espaço e estrutura usando o mínimo de elementos visuais possíveis. Um prelúdio de um modo de expressão que seria batizado muitos anos depois como Minimalismo.

A artista foi uma visionária desde o início, devido a uma obra diversa e duradoura que permeou momentos cruciais da arte latino-americana, Lygia Pape foi além da transformação da linguagem das artes visuais e provocou uma mudança radical na experiência artística.

A exposição intitulada Lygia Pape – Magnetized Space, trouxe gravuras, filmes, livros e esculturas de 7 de dezembro de 2011 a 19 de fevereiro de 2012, na Serpentine Gallery em Londres. Era uma mostra que foi previamente exibida no museu Reina Sofia, em Madri, e depois na Pinacoteca de São Paulo, no Brasil, com o nome Lygia Pape – Espaço Imantado.

Gravurista, escritora, cineasta e designer, Lygia Pape, tinha uma prática artística rica e inovadora que combinava uma gama de mídias. Ela foi membro do movimento e o concreto, que foi um divisor de águas na tendência Abstracionista da América Latina. No Brasil, o Abstracionismo foi configurado principalmente por seus elementos Concretos, ou seja, uma manifestação visual na qual elementos geométricos eram vistos como uma maneira de
retornar ao que os artistas acreditavam ser as origens das formas, buscando transcender aparências, paisagens ou figuras.

Essa busca por uma linguagem visual universal que impregna a arte Concreta, na qual a imagem é desvinculada de seu simbolismo, se tornou uma influência muito forte para artistas que, como Pape, queriam resgatar a arte da “condição de esclerose” 1 que era predominante na arte brasileira daquele período. No entanto, dentro do sistema de ideias Concretista, que alimentava muito da geração de artistas brasileiros da década de 1950, houve dois momentos principais: o momento inicial, que começou em 1952 com o Manifesto Ruptura, no qual os artistas adotaram uma postura rígida em relação à arte, aceitando a razão como a autoridade suprema na determinação da prática artística; e mais tarde, o segundo momento, marcado por uma cisão entre os artistas que estavam sob o rótulo da Arte Concreta.

Esse segundo momento se formalizou com a publicação do Manifesto Neoconcreto em 1959. O motivo desta ruptura entre os artistas foi que o grupo que ficaria conhecido como Neoconcretistas optou por um caminho artístico amplo, que dava muito mais ênfase aos elementos sensoriais e aos gestos do artista do que a seguir regras teóricas. Pape estava entre estas pessoas que defendiam uma compreensão mais aberta da arte e, ao lado outros membros do grupo, como Hélio Oiticica (1937-80) e Lygia Clark (1920-88), ela mais tarde inaugurou o que seria chamado de “arte participativa”, na qual a experiência sensorial com o público está acima de qualquer outro resultado racional.

Em Lygia Pape – Magnetized Space, pode-se observar essa trajetória, desde as formas geométricas do plano até a incitação das propostas abertas que não residem no próprio objeto artístico. As séries de xilogravuras intituladas Tecelares (1956-58) revelam o método cuidadoso de trabalho que ela usou para estabelecer a estrutura, o volume e a textura de formas calculadas em preto e branco. O corte da madeira é inegavelmente um meio implacável, no qual qualquer erro cometido enquanto se esculpe uma superfície é difícil de ser corrigido e muitas vezes leva o artista a recomeçar do zero. Pode-se imaginar que é ainda mais difícil para um artista que estivesse em um processo de redução sintética de componentes expressivos. A criação de Tecelares – plural de “Tecelar”, em português, que significa o ato de tecer, trazendo a ideia de um procedimento tradicional –, a partir de blocos de madeira, claramente demonstrou uma racionalidade matemática se fundindo com a vida orgânica.

Durante o auge da sua produção de Arte Concreta, Pape estava de fato apresentando o que seria a base central de sua obra após a fase Neoconcretista. Sempre que questionada sobre sua escolha de continuar trabalhando com tal meio, Pape costumava explicar que o bloco de madeira havia dado a ela uma perspectiva diferente em relação ao plano. Era compelida a trabalhar de maneira horizontal, diferente de quando pintava. Sobre as outras imposições da gravura em madeira, ela fez o seguinte comentário:


“Eu tinha agora uma superfície negra, de madeira tintada, cheia de pequenos riscos brancos (o poro da madeira) e a minha faca abria o espaço branco: inicialmente fios e superfícies que iam aos poucos crescendo, contra o próprio sistema da xilogravura, onde o branco era discreto e indicava, quase sempre, o limite ou perfil da imagem ou figura. O que me interessava era abrir espaços (o branco) cada vez maiores, atingir o limite extremo da expressão através de um mínimo de elementos. Uma superfície quase toda branca (a própria negação da xilo) e fios negros vibrantes pela própria qualidade do poro da madeira (…) Na verdade, eu estava resolvendo problemas que iam além das limitações de tamanho da gravura. Acho que essas gravuras (tecelares) têm uma monumentalidade, como se fossem muito grandes. Elas comportam grandes ampliações” 2

De fato, as linhas de Tecelares foram além da sua escala original em uma transição para a instalação escultural Ttéia (primeira versão datada de 1977). Os impressionantes filamentos dourados e transparentes, presos de maneira simétrica desde o chão até o teto, são o coração da exposição. A obra, exibida na 53ª Bienal de Veneza em 2009, captura o espectador em um encantador movimento de luz e abstração poética. Andando ao redor da obra, o desenho espacial muda a cada passo. A teia monumental brilhante e reflexiva de Ttéia é montada em uma única sala da galeria, dedicada exclusivamente a ela. Outro destaque da exibição é a obra Livro do Tempo (1961-1963) que assim como Ttéia ganha uma estrutura diferente a cada vez que é exibida. A obra é constituída por 365 superfícies de madeira coloridas de 15×15 centímetros quadrados. Novamente, a estrutura geométrica prevalece, projetando símbolos amarelos, azuis, pretos e vermelhos, que não se repetem. Embora sejam um grande conjunto de pequenas pinturas em madeira, é intitulado “livro”, já que a intenção de Pape era criar um calendário, ou melhor, um diário composto por todos os dias do ano.

Criar uma obra de arte no formato de um livro foi uma ideia que inspirou Pape por muitos anos. Na mostra, também é possível ver o Livro de Arquitetura (1959-1960) que é uma estrutura de 12 folhas de papel cortadas e pintadas. Cada uma delas corresponde a um estilo arquitetônico específico, como o Paleolítico ou o Gótico. Mais uma vez, a artista quis conquistar o máximo com o mínimo de elementos. Neste caso, ela tentou, de maneira brincalhona, englobar a concepção completa de construção usando cortes, dobraduras e técnicas de colagem. Outro livro que aparece na mostra é o Livro da Criação (1959-60), que é uma variedade de pedaços de papel coloridos, que podem ser manuseados, e são capazes de contar a criação do universo de acordo com o participante que interage com, ou “lê”, no livro. O livro pode ser visto em um vídeo na galeria. Entretanto, a falha de informação sobre a obra não permite que o público identifique os bastidores do projeto artístico. Na verdade, a ausência de contextualização é o ponto mais fraco da mostra.

Esta deficiência pode ser percebida em outras obras expostas e é prejudicial à compreensão das realizações artísticas fascinantes de Lygia Pape. Há outros quatro vídeos que sofrem da mesma omissão, consequentemente confundindo o público que não está familiarizado com a artista. Em nenhum momento está muito claro quais vídeos são relacionados ao seu trabalho como cineasta ou à documentação de uma de suas performances. No caso de uma performance, o fornecimento de mais detalhes poderia ajudar a esclarecer o que o público está assistindo.

Além disso, os organizadores poderiam ter sido mais cuidadosos com a qualidade do material que foi apresentado. Seria considerado aceitável manter um aspecto vintage nas imagens, já que são filmes genuinamente antigos. No entanto, os vídeos estavam malconservados, às vezes, com aparência lavada e mofada. Poderiam ter sido restaurados sem muito custo. Outro exemplo que ilustra a ausência de contextualização é o conjunto de fotos em preto e branco que batizou a exposição Magnetized Space ou Espaço Imantado. Elas são penduradas sem qualquer registro sobre sua representação, e é mais intrigante ainda ver nas etiquetas que não foram sequer fotografias tiradas pela artista. Uma apresentação mais respeitosa de uma artista tão importante seria bem-vinda.

À vista disso, pode-se dizer que a exposição Lygia Pape – Magnetized Space é, na verdade, uma coleção justa do trabalho da artista, mas que não oferece toda a dimensão da sua produção. É um erro chamar a mostra de “grande retrospectiva”, como parte da mídia britânica tem dito. Não poderia sequer ser chamada de retrospectiva, já que a parte revolucionária de seu trabalho, as descobertas estéticas relacionais e participativas que são, enfim, o resultado culminante da trajetória artística de Pape, não é bem introduzido ao público. Ainda assim, antes tarde do que nunca, Lygia Pape está sendo celebrada com umaexposição individual na Europa.

Se você chegou até aqui na sua leitura, tenho um bônus para complementar a sua leitura: dez anos depois, em 2022, foi a vez do público germânico sentir a liberdade a flor da pela da obra de Lygia Pape, O museu K20 in Düsseldorf, um dos meus favoritos da Alemanha, apresentou a exposição Lygia Pape: The Skin of ALL, de março a julho de 2022, recebendo um destaque da mídia alemã. A minha colega Özlem Özdemir, editora do Journal a |The German-english Journal for architecture & art fez uma ótima resenha que você pode ler em alemão e inglês aqui:

https://journal-a.com/lygia-pape-the-skin-of-all-ausstellung-k20-duesseldorf-2022/